Cristiane Mare da Silva e Paulino Cardoso. A nudez em dois mundos. 30 de dezembro de 2025.

 

Foto créditos: Adriano Vizoni/Folhapress.


A NUDEZ EM DOIS MUNDOS


Recentemente inventamos uma viagem com o intuito de paulistanear, um jeito gostoso de lidar com nosso provinciano território catarinense e vê-lo chocar-se com a imensidão civilizacional da esquina do mundo. 

Fomos  a dois espaços culturais em São Paulo, que nos deram uma oportunidade fantástica de tematizar o desencontro entre a classe média liberal e o mundo das classes populares.

As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? Português,2017,Autor: Guerrilla Girls, Nova York, Estados Unidos, 1985,data da obra: 2017, Técnica: Impressão digital sobre papel, dimensões: 32 x 73 cm


Ato I - De primeiro, chamou atenção de pronto a decisão do Museu de Arte de São Paulo em defender a gratuidade como um direito ao acesso à cultura. Detalhe, no horário das 18:00 às 21:00, em uma sexta-feira. Ou seja, depois do trabalho e antes do rolê. 

Em segundo, o lugar da inclusão cultural no acervo. Para além de cultivar a arte ocidental, mormente, Europeia, a exposição começa por um encontro dos visitantes com a produção artística da América Latina, frutos de exposições recentes na instituição, e só no final você encontra os clássicos do impressionismo aos renascentistas. 

Entretanto, para além de nos deparar com um enxame de rostos populares e seus modos de incorporar a arte, um Renoir tornou-se instagramável, assim como um Sandro Botticelli, encontramos um Manifesto feminista com o seguinte título: As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo? 

Para além da legitimidade do tema, chama  atenção o modo como ele foi expresso. É como se nos dissesse, “É preciso ser puta para entrar no MASP?” Ou seja, a reivindicação estava embrulhada em uma moralidade tipicamente burguesa, puritana, característica do feminismo liberal, que, de certo modo, tem dificuldade de lidar com a nudez, igualmente também revela o desencontro e o confronto dos nossos Brasis, o primeiro, embriagado na chamada civilização ocidental e daquelas que precisam cultivar o bastião dessa cultura, embora não saibam, possuem o papel clássico de higienizar e criminalizar aquilo que não diz respeito a sua classe, em confronto com o  Brasil dos pés descalços, desavergonhados, quando não grotescos mundos das classes populares.

Mc Carol de Niterói – Vigília”, “Mc Carol de Niterói – Vigília”, 2021, óleo, acrílico e carvão sobre linho, 150 x 120 x 8 cm


Ato II- Em outro momento, assistimos a belíssima exposição FUNK, UM GRITO DE OUSADIA E LIBERDADE no Museu da Língua Portuguesa. Já sabemos que a instituição prima por fazer exposições que produzem  uma leitura a contrapelo, quando não um assombro da cidade e do mundo. Mas, desta vez, ela passou da conta. O mundo das classes populares, favelados e periféricos, não adentrou no espaço cultural como a Beleza do Morto tão bem retratada por Michel de Certeau, na qual , as práticas populares depois de perseguidas e esvaziadas de sentido, são eternizadas em museus. Pensando bem, não foi esta a saga da cultura popular na Idade Moderna Europeia descrita no livro homônimo de Peter Burke?

Pelo contrário, na exposição, originária do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR)  e ambientada para incluir a experiência paulista, é a cultura viva, na sua máxima expressão, sua história e seu vínculo com a Soul Music e o Black Soul dos movimentos dos direitos civis nos EUA e no Brasil, nas vestimentas presentes em manequins e lindas fotografias, uma profusão audiovisual, expressa também nos depoimentos, sem deixar de notar a violência que atravessa o cotidiano dessas populações. 

Sem dúvida, um dos momentos mais prazerosos e que causavam diferentes reações, do riso ao gozo, até mesmo um safanão de uma senhora em seu marido idoso, porém atento. Em outro momento, uma senhora branca, com seu riso cheio de escárnio da manequim vestida para o baile charme afirma: aqui, elas ainda se vestiam!!!

Eis um vídeo com performances de funkeiras e suas maravilhosas bundas. Ficamos a imaginar o que diriam as feministas liberais: novamente a coisificaçao da mulher negra, presente desde a voluptuosa Mulata de Di Cavalcanti, que mereceu um senão ahistórico da curadoria do MASP,  aos incríveis glúteos no Museu da Língua Portuguesa, talvez imaginassem que naquele espaço o funk estaria disciplinado e comportado, afinal  é o museu um lugar de uma alta cultura.

Qual o problema delas? Não sabe nada John Snow. Presas ao padrão puritano, não fazem a mínima ideia do lugar da nudez nas culturas populares, em especial, afro-brasileiras. Aquelas mulheres gravaram a si mesmas no seu melhor rebolado. Corpos fits e obesos, todos lindos. No dizer de um funkeiro, o funk é inclusivo, dança gordo, magro, sem braço, e as mulheres têm uma vantagem, suas cinturas são mais soltas.

A nudez, o erotismo, a sensualidade, presentes no samba, no funk e outras manifestações populares, parecem romper com essa cultura das elites que se forjou em séculos baseado no controle do corpo. Assim como os populares invadiram com sua arte o elitista esporte bretão, que era avesso ao Brasil dos pés descalços, o Funk, arrebenta com o moralismo do Brasil colonial, branco, cristão, portanto europeu para afirmar a genialidade e criatividade das culturas populares, construindo espaços recreativos, em meio a tantas dificuldades. Dificuldades, cujo objetivo é produzir a desumanidade, seja nas favelas cariocas, nas periferias de São Paulo ou nos morros de Florianópolis, eles cantam, dançam, e se reinventam através da festa e do riso.

Neste e em outros textos, vimos chamando a atenção pela necessidade da Esquerda política desfazer-se dos vínculos com uma cultura burguesa e da importância de encharcar-se das culturas populares. Verdade seja dita, é isso que faz do "pequenino PCO", o Partido da Causa Operária, expressão de uma esquerda radical com sua bateria, seu bloco de carnaval. Seu feminismo leva o nome de Rosa Luxemburgo, seu antirracismo o de João Cândido. Como disse nossa filha Helena Dulce de 12 anos, essas lutas são importantes, mas não podem deixar de lado a luta de classes.

Breno Altman, Alysson Mascaro, entre outros perseguidos, estão a nos lembrar que é fundamental realizar um enfrentamento com a cultura burguesa, uma verdadeira guerra cultural que deixe evidente para a população a distinção entre nós e a classe dominante. Sem isto, além de semear confusão, nunca veremos nada de bom no povo brasileiro, tema central nas reflexões do sociólogo Jessé de Souza.

Um ponto final, não deixa de ser incrível que a cidade de São Paulo, que reúne o pior e o melhor da sociedade brasileira, possa proporcionar aos seus habitantes uma série de atrações gratuitas de ótima qualidade. Deveria servir de exemplo para outras capitais e cidades do nosso imenso país.

Autores:

Cristiane Mare da Silva é professora de História e Espanhol na Rede Pública de Santa Catarina 

Paulino Cardoso é historiador, analista geopolítico e editor do Blog Mundo Multipolar.

Referências:

BURKE, Peter . A cultura popular na Idade Moderna. São Paulo, Companhia das Letras,1989.

CERTEAU, Michel. A cultura no plural. Campinas, Papirus, 1995.


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