Cristiane Mare da Silva. El SUR ES MI NORTE: LAS MÁRGENES DE SI. Arandu: Estudos de Crítica da Cultura Contemporânea, 03 de agosto de 2025.

 


Mural de Igor Izi próximo a Ponte da Amizade em Foz de Iguaçú, Paraná.


El SUR ES MI NORTE: LAS MÁRGENES DE SI.

Cristiane Mare*

Essa é a cara do Sul que me encanta, e da qual eu sou profundamente apaixonada. Precisei do tempo, para que a gente se encontrasse. "Ara", que significa tempo, e “Andu”, que significa sentir ou ouvir= Arandu ou sabedoria em guarani.

 O retorno à Cascavel, Paraná, foi um vislumbre do passado no presente. Voltar aos espaços de memórias que nos causaram profundo sofrimento não é tarefa das mais fáceis, entretanto, podem ser uma oportunidade para alinhavar as ideias e dar-nos o direito de enfrentar nossos próprios demônios. 

O certo, é que referente às minhas inúmeras experiências e ao trágico destino de lideranças latinoamericanas, também compreendi que há uma Cascavel, como a Moira para os gregos, em todo lugar. 

Portanto, retirei Cascavel de seu lugar recôndito e singular, minha Cascahell, a situando dentro de disputas de narrativas e projetos políticos civilizacionais. Você pode andar, percorrer esse Sul, no sentido do uruguaio, Torres Garcia, O Sul é o Meu Norte, e nos deparamos como única realidade que assombra qualquer ser mediano: "Las Venas Abiertas de Latinoamérica”,   uma herança colonial reescrita em diversos  ângulos, o resultado é quase sempre o mesmo,  uma organização social hierárquica, em que a Raça/Classe compõe as paisagens e organiza populações inteiras.

Viajei de dentro para fora, confrontei ideias, propagandas como o Sul é o Meu País, ou a história dessa parte do cone sul, a partir da chegada de apenas uma parcela dessa população. Não deixa de ser curioso que aqueles que reivindicam uma origem europeia, mormente alemã e italiana, são descendentes das vítimas dos movimentos do capitalismo no continente europeu. Expulsos dos seus lugares pela apropriação, miséria ou guerra,foram as últimas populações a chegar no território.

Entretanto, em termos da longa duração, que pode envolver centenas, ou mesmo milhares de anos, os novatos, feitos classe dominante ativam uma  disputa de memórias, uma higienização de tudo que não lembra o simulacro de uma Europa inventada. As origens, pegadas, vestígios, das demais populações precisam ser apagadas, destruídas no processo de uma constante colonização.

A luta por um discurso latino-americano, assentado em uma experiência histórica e cultural comum, se faz ora como possibilidade de abertura, pensamento oceano, inscrito nos corpos e nas ideias de uma multiplicidade de povos a almejar a Pátria Grande.

Ora se contrapõem àqueles que se dizem portadores da palavra de Deus, pensamento ilha e refratário, atualizado no mantra: Deus, Pátria e família, Deus Acima de tudo, o Brasil Acima de Todos, no Brasil, ou ainda na Argentina, Libertad Carajo!!!, ou de um Donald Trump, do Make America Great Again. De um e de outro lado do continente americano, a defesa de uma América branca e cristã. Nesse sentido, parte da minha atenção se atenta nestes espaços na qual se confrontam esses projetos. 

Ao mesmo tempo, é preciso sabedoria, algo que só as nossas experiências, mergulhadas no tempo produzem, para se assim quisermos, sermos capazes de ver, ouvir, sentir outros quereres que pulsam dentro desses múltiplos territórios.Não se trata do tão usual consumo das culturas afros ou de populações nativas, como se mais uma vez, nossos corpos,fossem transformados em  mercadorias, servindo para saciar o enorme vazio dessa sociedade burguesa, ou da classe média branca.

Nesse sentido, do ponto de vista histórico e cultural essas mesmas populações deveriam perguntar se afinal, por que foram expulsas de sua terra de origem, e qual a sua sorte em ter em terras estrangeiras a oportunidade de reinventar-se, de tornar se brasileiros, sorte, perseguida ainda hoje por tantos, que assim como os primeiros, são expulsos de sua terra de origem na expansão do capitalismo... 

Muitos dos descendentes euros passarão o resto de suas vidas lutando por uma dupla cidadania, que nunca lhe permitirá ser um cidadão europeu, como um ciclo seguirão sendo expulsos, cidadãos de segunda categoria, só podem exercer seu poder em Terras Tupiniquins, só aqui podem revogar o privilégio de serem europeus tropicais. Suas eternas rosáceas nos recompõe a memória, que uma pele amorenada como a de todos os nativos dessas terras, lhes cairia muito bem. Afinal, temos um inverno ameno e verões abrasivos

Em busca de contrapor uma Cascavel, branca, portanto europeia e cristã, conheci outros espaços, me voltei para a multiplicidade da tríplice fronteira, espaço de trocas intensas não apenas de mercadorias, mas de ideias, deslocamentos dos espaços, que vão produzindo entre lugares.




BACIA DO RIO DA PRATA

Me encantei com o jopará,  a vivacidade de uma língua guarani,   deste encontro resultou conhecer um português profundamente criolizado, em sua sintaxe e vocabulário, nomes de rios, cidades, frutas, na nossa culinária,  lá está a memória dessa cultura que tentam sufocar, assim como os corpos de crianças, adultos e velhos compondo "Los nadies" das cidades latinas.

Me encontrei com uma Buenos Aires e uma Montevideo negra, onde o Candombe e os tambores africanos  tomam as ruas das cidades e ganham os corações dos cidadãos del Mar del Plata. Os vestígios estão em toda parte, basta sairmos da superficialidade. A impressão que trago é que basta cavarmos alguns centímetros ou ainda fazermos as perguntas corretas, para nos encontrarmos com mundos soterrados.

Nas minhas idas e vindas, pelejei muito, participei de organizações políticas e depois fui despejada, porque nós podemos brincar de fazer mudanças, mas o palco, as ideias, não podem vir carregadas de Ubuntu, eu sou porque nós somos. Ela precisa desagregar, para que prevaleça apenas o indivíduo, a ganância e o conformismo .. 

É incrível, quando deixamos de ser cativos, mas isso causa medo nas pessoas e diante o medo, elas respondem com mais violência, repressão, ódio... Com medo de que as coisas mudem. 

Nosso olhar sobre o mundo nasce da magnitude e integração de um Rio Paraná, atravessando Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia e Paraguai. Vale lembrar, Paraná, significa em guarani, rio que se assemelha ao mar, compondo a beleza e grandiosidade da Bacia do Prata, de quem é o maior afluente, temos o mesmo assombro desses velhos habitantes da região. É inegável que como o Mediterrâneo de Fernand Braudel, o Paraná é o sujeito histórico a entrelaçar nossas vidas...

Os Movimentos constroem a vida, as histórias e a nossa própria humanidade e nessa dialética, ora avançamos, ora retrocedemos. 

“Ponte da Amizade” que une  Foz de Iguaçú, Pr, a Ciudad del Este, Py. Foto disponível na internet.

*Cristiane Mare da Silva é graduada em Letras Português-Espanhol, Licenciada em História,             mestre e doutora em História pela PUC/SP e professora da Rede Publica Estadual de Santa                     Catarina.


Comentários

  1. Um texto ótimo para refletirmos sobre a diversidade etnocultural destas terras sul-americana. A constante luta pelo reconhecimento, existência e convívio entre os povos originários e os estrangeiros. A infeliz ideia de superioridade neogermânica torna mais importante o debate social.

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