Cristiane Mare da Silva e Paulino Cardoso. O ODIOSO ANTIRRACISMO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA. Comunidad Saker Latinoamérica, 21 de novembro de 2025
O ODIOSO ANTIRRACISMO DA CLASSE MÉDIA BRASILEIRA
Em uma entrevista recente à Revista Carta Capital, Marilena Chaui, filósofa e professora da Universidade de São Paulo,USP, afirmou que em uma sociedade capitalista, dividida entre dominadores e dominados, a classe média cumpre uma função: mesmo sem identidade, serve de correia de transmissão dos valores das classes dominantes.
Ela, ao mesmo tempo em que possui o sonho de ser burguesia, convive com um pesadelo constante, cair na pobreza. Porém, como confunde capital com dinheiro, cria a ilusão de pertencer a burguesia por meio do consumo de sinais de riqueza, o carro, a casa com seus inúmeros banheiros, as viagens internacionais. "Então, como ela controla o pesadelo e o sonho? Bajulando os dominantes e massacrando, com o seu discurso, com as suas práticas, os dominados". E concluí: a classe média é odiosa.
No presente texto queremos refletir sobre os impactos da apropriação por parte da classe média do discurso antirracista, de como ela rompe com a tradição de lutas negras, por sua natureza, popular, radical e dissidente, e a transforma em instrumento de chantagem por meio do qual garante sua ascênsão e/ou permanência na classe média.
Infelizmente, este não é um fenômeno brasileiro, mas inerente ao hemisfério ocidental, em especial, seu centro: o império. Em entrevista ao canal Índia e a Esquerda Global, o filósofo Cornel West abordou como um discurso antirracista, dissociado da crítica a supremacia branca e ao imperialismo capitalista, tende apenas a arrastar para as grades do sistema, rostos negros, enquanto a massa negra continua presa em um oceano de pobreza.
Isto nada tem haver com a negação da raça e do racismo. Como nos lembra o professor West, a raça foi desclassificada como conceito científico, mas foi legalizada, institucionalizada e permanece organizando nossas vidas.
Quando o movimento negro no Brasil foi reconstruido nos anos 1970, ele não estava sozinho. Sem configurar um movimento, mas práticas de sociabilidade, homens e mulheres negros, professores, funcionários públicos, mobilizaram escolas de samba, clubes recreativos, entre outros, como instrumentos de construção de solidariedades verticais com membros das “elites”, principalmente ativos em períodos eleitorais. Aqui em Santa Catarina, Esperidião Amin, lá em São Paulo, Paulo Maluf, ou mais além, na Bahia, Antônio Carlos Magalhães.
Em contraste, as, então, novas gerações, filiadas ao Movimento Negro Unificado, Grupo de União e Consciência Negra, mais tarde, os Agentes de Pastoral Negros e uma míriade de grupos locais, mobilizaram a dor e a raiva em forma de discurso, que Maria Ercilia Nascimento, em sua dissertação de mestrado na PUC/SP, definiu nos anos 1990, como uma estratégia de denúncia.
Estas novas organizações antirracistas mobilizavam pessoas para conscientizá-las sobre a violência policial, discriminações de todo tipo no comércio e nos locais de trabalho. Um bom militante era aquele capaz de criar o maior número de núcleos de base em morros, favelas, comunidades, locais de trabalho.
Essa gente, confusa ou não, participou da Luta transnacional contra o apartheid na África do Sul, apoiou a luta pela independência das ex-colônias portuguesas em África. Leitores de Aimé Césaire, Amílcar Cabral, Franz Fanon, Eldridge Cleaver, Angela Davis, Malcon X, Alice Walker, Toni Morrison, Clóvis Moura, Edson Carneiro, Joel Rufino, Lélia González, Neusa Santos Souza.
Éramos, a um só tempo, classistas, antirracistas e anti-imperialistas. Como os demais movimentos sociais, compúnhamos um movimento que inventou a si mesmo, como um sujeito coletivo e construiu um sentido de cidadania tão bem representado na Constituição Federal de 1988.
Muito distante da voz hegemônica que transformou entidades em ONGs, desde o final dos anos 1980, nas quais os dirigentes mais importantes são financiados por fundações estrangeiras públicas e privadas, em especial, a Fundação Ford, NED, Open Society, Konrad Adenauer, Fulbright .
Tais organizações mudaram a agenda do Movimento. Então, pessoas como o grande Hamilton Cardoso , que por sinal se suicidou, tinham uma perspectiva antissistêmica e que apostaram em uma articulação de classe e raça. Aos poucos o antirracismo radical, foi cedendo espaço para uma pauta cada vez mais liberal, focada na representação, como por exemplo, as políticas de ação afirmativa , que privilegiam os poucos que sobreviveram à máquina de moer gente do capitalismo brasileiro.
O maior exemplo dessa política foi a campanha por uma mulher negra no STF, enquanto uma massa de gente jovem, preta e periférica apodrece nas masmorras brasileiras, distantes da miséria, essa classe média não se importa com as mazelas que organizam a vida da massa da população negra, agora, seus interesses de classe se reduzem a alargar espaços que exigem alta qualificação.
Nesse sentido, os discursos em torno da representatividade são fundamentais, quando os miseráveis são úteis para que ela possa chantagear, disputar e angariar espaços dentro da classe da qual faz parte. Não deixa de ser tristemente irônico, que logo após um episódio de genocídio que vitimou mais de 160 pessoas, negras ou negras de tão pobres no Rio de Janeiro, a atríz Thaís Araújo, embaixadora da ONU-Mulheres, apareça nas redes sociais lançando a Marcha de Mulheres Negras 2025.
Na sua primeira versão em 2015, marcou a conquista do discurso antirracista pelas ongs feministas negras, controladas por fundações internacionais. E a perda de visibilidade das organizações mistas de homens e mulheres, e o banimento, cancelamento de intelectuais negros. Precisaremos enfrentar o meio por qual os intelectuais negros são facilmente difamados, criminalizados e assassinados, tal qual os velhos linchamentos, tão bem conhecidos pela comunidade negra.
Estas organizações identitárias expressam um compromisso destes grupos com o neoliberalismo/globalismo derrotado por Donald Trump. Sim, o antirracismo liberal é parte da Woke Culture denunciada por grupos soberanistas autoritários como o vice-presidente dos EUA, JD Vance em Munique neste ano.
Eles não tem absolutamente nada a ver com as tradições de lutas negras na diáspora africana, insistimos, por sua natureza, radical e dissidentes, entretanto, capturam seu vocabulário. Por sinal, quantas destas ongs antirracistas levantaram suas vozes em defesa do povo palestino nos últimos dois anos? Eles têm medo de perder o financiamento dos seus patrocinadores ocidentais ou simplesmente não se importam. Os mesmos que sustentam a colônia sionista na Palestina ocupada.
Enquanto a Esquerda não se desvencilhar desse compromisso com os antirracistas liberais, que a destrói, ela merecerá a pecha dos conservadores ocidentais de sinônimo de cultura woke e não de grupos e pessoas comprometidas com a luta classista e antiimperialista.
Precisamos aprender a discernir, duas tradições distintas, portanto , opostas. Raça x classe, e seu enfrentamento ao capitalismo, imperialismo e colonialismo, frutos de uma tradição radical, do identitarismo neoliberal, mudar, para não mudar nada. O identitarismo esvazia a discussão, ao produzir a ilusão que em uma sociedade capitalista é possível dar fim ao seu conceito primordial, é a Raça que dentro de sociedades coloniais e neoliberais naturaliza a desigualdade e, deste modo, produz as classes sociais.
É certo que nunca produziu-se tanto acerca do antirracismo. Se até a década de 1990, é o silêncio que opera, hoje, ele está em toda parte, vendendo cursos para empresas e investidores, cursos de letramento racial, que vão da Faria Lima às redes sociais da Meta.São centenas de produtos a serem consumidos, frases de efeitos, camisetas com heroínas e herois, convidando a todos se caso queiram sentir-se parte da seita desconstruída e decolonial, a consumir seus produtos. Diante da miséria e da brutal violência que nos cerca, tal hiperexposição chega a nos causar náusea.
Como boa classe média ávida por dinheiro, somos todos convidados não a mudar o mundo, mas a nos tornarmos consumidores, ao mesmo tempo, que nos sentimos representados e com a consciência tranquila nos produtos e nos rostos negros que nos são oferecidos pelas corporações monopolistas internacionais e seus departamentos de diversidade, equidade e inclusão. Sem dúvida, esse antirracismo e seus agentes são odiosos.
Fontes:
India e a Esquerda Global, 12 de novembro de 2025.
https://www.youtube.com/watch?v=VVyL37ddq3M
Carta Capita , 31 de outubro de 2025.
https://www.youtube.com/shorts/21OTKfV39yA
Cristiane Mare da Silva, é historiadora, professora da rede pública de Santa Catarina.
Paulino Cardoso, historiador e analista geopolítico, editor do Blog Mundo Multipolar.
Publicação original:
https://sakerlatam.blog/o-odioso-antirracismo-da-classe-media-brasileira/

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